Por Marília Gehrke*
Ao observar os números de casos confirmados e mortes por Covid-19 em Porto Alegre, a impressão é de que a Prefeitura de Porto Alegre e a Secretaria de Saúde do Estado não se comunicam. Realidades paralelas são descritas por meio dos números: enquanto o município apontava 1.367 casos confirmados até o dia 3 de junho, o Estado informava que a Capital registrava apenas 778 ocorrências. Em comum, apenas o número de óbitos por Covid-19: 41.
Diariamente, eu e outras duas voluntárias do Brasil.io atualizamos, na plataforma do projeto, o número de casos confirmados e mortes em municípios gaúchos em decorrência da doença. Não raro, Porto Alegre fica estagnada (sem receber atualização) durante vários dias no painel do RS. Um desavisado pode pensar que o município é uma exceção em meio ao caos, mas não. Mesmo com os dados da Prefeitura, que são mais altos, sempre haverá subnotificação enquanto não houver testagem em massa.
Dados divergentes
Um dos problemas em relação aos dados oficiais é a falta de convergência de estados e municípios em relação a um padrão. A Prefeitura de Porto Alegre, por exemplo, realiza a comunicação de casos por meio de boletins diários que repercutem em sites de rede social. São várias páginas explicando a metodologia e os dados. Infelizmente, o conteúdo não está disponível em formato aberto e legível por máquinas (como um .csv), que facilitaria a análise dos números. Algumas semanas atrás, o município chegou a publicar, junto aos boletins, uma tabela com informações sobre o perfil dos pacientes, data e local da notificação. Hoje, a Prefeitura oferece apenas um mapa – desatualizado – em que é possível observar as áreas onde há maior concentração de casos por Covid-19.
A Secretaria da Saúde do RS, por sua vez, divulga os dados de Covid-19 em um painel. Esta semana, quase três meses após o primeiro diagnóstico confirmado da doença no Estado, finalmente os dados passaram a ser oferecidos em formato aberto. Entretanto, desatualizados para municípios como Porto Alegre. O jornalista Marcelo Soares, que coordena o Lagom Data e monitora dados de Covid-19 nos municípios, lembrou no Twitter, esta semana, que a falta de atualização de dados sobre Porto Alegre no painel do RS coincide com a reabertura do comércio local. Ele apontou que a Secretaria Estadual represou os números da capital por 10 dias e, quando finalmente os informou, os dados continuavam defasados.
Por e-mail, a assessoria de comunicação da Secretaria da Saúde do RS informou que: “Há uma normativa federal do Ministério da Saúde determinando que as notificações por parte dos municípios sejam feitas em uma plataforma nacional chamada de e-SUS Notifica ou SIVEP. Cabe a cada município a tarefa de contabilizar os diagnósticos positivos da Covid-19 a partir de testes RT-PCR, testes rápidos e vínculo epidemiológico. Feita essa notificação na plataforma do Ministério da Saúde, os casos entram nas estatísticas oficiais do Estado e no mapa digital que é disponibilizado à população. Muitos municípios divulgam os casos em suas redes sociais antes de encerrarem o preenchimento na plataforma oficial do Ministério da Saúde, gerando essa defasagem. O Estado montou uma força-tarefa para contatar os municípios a fim de orientar e solucionar essa deficiência.”
Outro problema recorrente é o sumiço de casos nos municípios gaúchos. Em um dia, ocorre a notificação sobre a existência de um caso em determinado município. No dia seguinte, este caso já não existe no painel do RS e some dos registros do Estado. A respeito disso, a Secretaria de Saúde informa que “um caso pode vir a ser excluído da contabilidade de um município quando ele é revisado, podendo se tratar de um erro no preenchimento do resultado do teste na ficha de notificação ou a identificação de que a pessoa é residente de outra cidade.”. O desaparecimento de dados é de difícil diagnóstico quando não há uma série histórica por município, problema que o Brasil.io pretende contornar.
Falta de transparência
A falta de transparência dos estados brasileiros na comunicação dos números de Covid-19 vem sendo monitorada pela Open Knowledge Brasil desde abril. O ideal, segundo a entidade, é que sejam conhecidos os microdados (um caso para cada linha da planilha) dos municípios. Atualmente, o Rio Grande do Sul apresenta um bom índice de transparência neste ranking, mas começou entre os piores e ainda precisa aprimorar a disponibilidade de informações. Sem a fiscalização de entidades, esses pequenos avanços provavelmente sequer ocorreriam.
O professor de Matemática Álvaro Krüger Ramos, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), questiona o modelo de distanciamento controlado em vigor no Estado. Seu estudo foi tema de reportagem esta semana. Segundo o professor, os critérios adotados atualmente dificultariam a ocorrência de bandeiras vermelhas ou pretas por região, que indicariam os lugares em situação crítica.
Subnotificação
A subnotificação e o desencontro dos dados não é exclusivo do RS. Problemas ocorrem no país inteiro e, assim mesmo, vão parar no painel do Ministério da Saúde. Em alguns estados e municípios, a principal questão é a falta de definição conceitual sobre casos e mortes por conta da doença. Por exemplo: são contabilizados apenas os casos que tiveram diangóstico confirmado para Covid-19 ou são incluídas, também, as vítimas de problemas respiratórios em geral? Em alguns estados, governantes simplesmente decidiram excluir essa segunda categoria da equação final, reduzindo, portanto, o impacto da Covid. Sobre isso, recomendo este texto escrito por Helio Gurovitz e publicado no G1. A Folha de S.Paulo também divulgou, esta semana, que dados do próprio Ministério da Saúde indicam que o Brasil teve, até abril, 9.420 mortes a mais por Covid-19 do que o divulgado à época.
As estatísticas oficiais servem (ou ao menos deveriam) para embasar políticas públicas, pesquisas, reportagens e tantas outras produções que impactam a vida em sociedade e o modo como o distanciamento social é estruturado, ou mesmo o quanto as pessoas devem levar a sério a quarentena. O desencontro dos dados prejudica comparações e gera desconfiança sobre os números oficiais, que ao mesmo tempo são a principal fonte de acompanhamento da evolução da doença. Enquanto a situação perdurar, cabe monitorar fontes complementares, como o portal de Registro Civil, o DataSUS, e admitir as limitações dos dados, que hoje não representam a realidade da disseminação da doença no Brasil.
*Marília Gehrke é jornalista e doutoranda em Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
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