Sul está entrando no período mais crítico da pandemia, avalia pesquisador da Fiocruz

Na entrevista a seguir, o coordenador do InfoGripe, Marcelo Gomes, explica o que se deve observar nos registros de SRAG para analisar os dados de Covid-19

Por Marília Gehrke

O avanço no número de casos e mortes por Covid-19 no Rio Grande do Sul, com registros diários de recorde e lotação de leitos nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI), deixa as regiões em alerta. Até ontem (13/07), o Estado registrava mais de 39 mil ocorrências e 995 óbitos, segundo dados da Secretaria de Saúde. Embora esses sejam os números oficiais, estima-se que haja subnotificação. Uma das formas de estimar casos não contabilizados é olhar para os registros de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) sem causa específica, disponíveis em plataformas como o Open Data SUS e o InfoGripe, esse último uma parceria entre a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o Ministério da Saúde. Para entender como esses dados podem ser úteis na análise de Covid-19, entrevistamos o pesquisador Marcelo Gomes*, coordenador do InfoGripe. Confira:

Afonte – Os dados de SRAG, divulgados em plataformas como o InfoGripe, têm sido utilizados para estimar a subnotificação de casos de Covid-19 no Brasil. Em algumas cidades – entre elas Porto Alegre/RS -, constatou-se que há relativamente poucos casos confirmados de Covid-19, mas uma alta no número de SRAG, especialmente em relação àquelas que não possuem causa definida. Prefeitos e governadores do Sul argumentam que, por conta do inverno, é natural que haja maior quantidade de problemas respiratórios neste período. Em que medida os dados de SRAG são efetivos para estimar a subnotificação de casos de Covid-19 e que outros indicadores devem ser levados em conta para saber, de fato, se uma cidade está conseguindo controlar a propagação do vírus?

Marcelo Gomes – Historicamente, já lidamos com um percentual relativamente alto de resultados laboratoriais negativos (“não detectável”) na vigilância de SRAG, por conta de diversos fatores que afetam a capacidade de detecção, como: tipo e qualidade da coleta realizada, tempo entre infecção/primeiros sintomas e data da coleta, armazenamento e transporte do material coletado até o laboratório, e sensibilidade do exame em si. 

No cenário atual, uma das maneiras de inferir impacto da Covid-19 nas SRAG é observar a distribuição etária dos casos notificados. Tipicamente, os casos de SRAG se concentram fortemente em crianças (até quatro anos) e pessoas acima de 60 anos. Este ano, desde o estabelecimento da transmissão comunitária da Covid-19 no Brasil, temos visto um volume muito grande de casos em adultos nas faixas 30-39 anos, 40-49, 50-59, e 60 ou mais, com maior incidência quanto maior a faixa etária (mais velho → maior incidência). Isso coincide com o que se observa nos casos positivos para Covid-19. Além disso, quando analisamos os casos que deram resultado laboratorial positivo para algum dos diversos vírus respiratórios testados, observamos que a imensa maioria (mais de 95%) apresentaram resultado positivo justamente para o vírus SARS-CoV-2 (responsável pela Covid-19). 

Embora não seja possível atribuir todos os negativos a resultados de falso negativo para a Covid-19, essas evidências sugerem que possivelmente uma parcela significativa desses negativos possa, sim, estar associada ao novo coronavírus no Brasil.

Por fim, o número de casos semanais de SRAG está significativamente acima dos valores típicos, estando desde a semana [epidemiológica] 12 (15/03 a 21/03) acima do “limiar de atividade muito alta”, que é o patamar de casos semanais calculado para cada estado/região que define o nível de alerta mais alto em termos de casos semanais. Esse valor é calculado com base no padrão histórico em cada território – é a linha horizontal tracejada em vermelho no gráfico da série temporal no InfoGripe (figura abaixo). Então, por um lado, as autoridades do Sul estão corretas em afirmar que esse é o período do ano em que tipicamente há maior volume de casos de SRAG. Porém, desde o estabelecimento da Covid-19 no Brasil, já estamos observando registro de casos muito acima do usual, sugerindo que podemos ter casos de falso negativo para Covid-19 entre os casos de SRAG não específicas (sem resultado laboratorial positivo para nenhum dos vírus respiratórios testados).


Afonte – Fala-se constantemente de subnotificação de casos por Covid-19 nos dados oficiais. É uma consequência do subdiagnóstico? Quais são as principais limitações do País, hoje, em precisar o número de casos e mortes por Covid-19?

Marcelo Gomes – São diversos fatores que contribuem para isso [ver vídeo explicativo]. Um deles é essa possibilidade de falsos negativos nos exames feitos em casos de SRAG, e a outra é decorrente da estratégia de testagem. Por muito tempo, a estratégia dominante foi testar prioritariamente casos de SRAG apenas. Isso faz com que a cobertura de testagem seja extremamente elevada entre pacientes graves, mas foca apenas na ponta do iceberg. Sabe-se que a maioria dos casos infectados pelo novo coronavírus desenvolvem casos leves e, portanto, não são cobertos por essa estratégia voltada para hospitalizados. 

Alguns municípios têm adotado estratégias próprias para testagem de casos leves, seja através da rede de atendimento ambulatorial, seja através de sistemas de drive-thru. Isso aumenta a capacidade de detectar casos leves, mas ainda depende de adesão da população em buscar atendimento ou teste a qualquer sinal de síndrome gripal. Já para os casos assintomáticos, esses somente serão descobertos caso haja testagem em massa ou estratégias de “busca ativa” (testagem de pessoas que tiveram contato com casos já identificados), o que demanda equipes de vigilância bastante grandes enquanto o número de casos for alto, como é a situação atual, além de capacidade de processamento laboratorial em larga escala (quantidade de equipamentos e profissionais de laboratório suficientes para processar as amostras em tempo hábil, compatível com a demanda).

Para os óbitos, temos a dificuldade de identificar e testar aquelas pessoas que faleceram fora do ambiente hospitalar, uma vez que é necessário que as pessoas próximas reportem a presença de sintomas nesse indivíduo para que o mesmo seja identificado como caso suspeito e possa então ser encaminhado para coleta de material. Importante destacar ainda que nesses casos é imprescindível a disponibilidade de equipamentos de proteção adequados, tendo a própria Organização Mundial da Saúde alertado para os riscos de infecção dos profissionais envolvidos nesse tipo de análise.

Em resumo, é necessário um investimento massivo no SUS, que se responsabiliza pelo diagnóstico de SRAG em todos os pacientes notificados, sejam eles da rede pública ou privada, e pelas equipes de vigilância em saúde, para que possamos ter uma cobertura adequada. Embora a vigilância de SRAG do Brasil, em termos de cobertura territorial, seja exemplar por cobrir todas as unidades de saúde que contem com internação, e ofereça testagem para toda a população notificada sem custo adicional para o paciente, ela sofre há muitos anos com sobrecarga de trabalho nos períodos de maior atividade. A Covid-19 veio deixar isso em evidência. Tanto os aspectos positivos de contar com um sistema como o SUS, como o impacto negativo de não termos o financiamento e dimensionamento adequado para épocas de surto epidêmico.

No entanto, mesmo com essas dificuldades, é possível utilizar os dados disponíveis para fins de análise de risco e alertas de situação. O fundamental é informar de maneira correta para que a população não ache que é um problema menor por estarmos vendo apenas a ponta do iceberg, nem comparar os dados do Brasil com os dados de países que efetivamente conseguiram estabelecer uma cobertura de testes massiva em sua população.

Afonte – De acordo com boletim semanal recente do Infogripe, o Brasil registrou, este ano, 226.325 casos de SRAG (independente da presença de febre), dentre os quais 67.746 (29,9%) são negativos, e ao menos 36.679 (16,2%) ainda aguardam resultado laboratorial. O total de casos de SRAG é muito acima dos 39.429 registrados em 2019 e dos 90.465 casos registrados em 2009, ano em que ocorreu o surto de Influenza H1N1. Voltando para os dados de 2020: ainda estamos na metade do ano e, além dos casos diagnosticados oficialmente como SARS-CoV-2 (o vírus causador da Covid-19), há uma ocorrência bastante grande de negativos. Parte deles podem ser falsos negativos que não entraram no cálculo final de Covid-19? É possível estimar qual o percentual, entre os casos negativos, que poderiam ser falsos negativos? 

Marcelo Gomes – Como discutido na primeira pergunta, é possível, sim, que uma parcela significativa desses casos negativos sejam falsos negativos. Infelizmente, hoje, não é possível quantificar esse percentual.

Afonte – Segundo nota técnica recentemente apresentada pela coordenação do Infogripe, o percentual de casos de SRAG (independente de febre) com resultado laboratorial negativo na Região Sul é de 58% este ano, acima dos cerca de 30% calculados para o País. Ao mesmo tempo, o percentual correspondente ao Sul está dentro da mediana usualmente registrada. O que esses números nos dizem sobre a situação da Região Sul, especialmente do RS, em relação à Covid-19?

Marcelo Gomes – A Região Sul historicamente sofre bastante com SRAG nos seus estados sendo, junto com os estados de SP e MG, responsável pelo maior volume de casos do país. Por conta disso, são estados com bastante atenção à vigilância de SRAG. Isso pode explicar uma maior sensibilidade (maior identificação de casos de SRAG) na rede hospitalar e, com isso, ter um percentual maior de casos negativos. Além disso, comparando com a curva de casos nas regiões Norte e Nordeste, e em SP e RJ, observamos que o Sul está em situação distinta, tendo se mantido em um patamar de casos semanais relativamente constante desde a semana [epidemiológica] 12, tendo apresentado retomada do crescimento apenas por voltada das semanas 20-23, enquanto essas outras regiões tiveram uma introdução e disseminação mais rápida, com casos em elevação desde a semana 12 e com alguns estados já em fase de declínio após um pico extremamente elevado nos seus territórios. Ou seja, aparentemente a Região Sul está entrando agora no seu período mais crítico.

Afonte – Conforme o boletim semanal já mencionado, o RS apresenta, assim como outros estados, ocorrência de casos de SRAG muito alta, demonstrando que há uma manutenção do sinal de crescimento no número de ocorrências. Depois de reabrir o comércio em maio, o prefeito de Porto Alegre voltou atrás e apresentou novas medidas de isolamento social, determinando o fechamento de estabelecimentos como academias e salões de beleza, além do bloqueio da Orla do Guaíba (um dos principais espaços de lazer a céu aberto). Em quanto tempo saberemos se as novas medidas são efetivas no controle de doenças respiratórias e da Covid-19? Para obter bons resultados, basta que a capital limite as interações sociais? Ou é preciso que o mesmo ocorra em cidades próximas? 

Marcelo Gomes – Geralmente, ações de flexibilização ou retomada das medidas de distanciamento físico levam em torno de duas semanas para surtirem efeito em termos de hospitalizações. É, tipicamente, o tempo que leva entre a infecção de evolução dos sintomas para casos graves que necessitem hospitalização. Quanto aos municípios engajados, é importante levar em conta os padrões de mobilidade para trabalho e estudo (residentes que trabalham/estudam em outro município) bem como a capacidade de atendimento da rede hospitalar de todos os municípios de mesma macrorregional de saúde, uma vez que compartilham a rede de atendimento pública. Na região metropolitana, temos tanto moradores de fora da capital trabalhando na capital quanto residentes de capital trabalhando em outros municípios. Isso faz com que a reabertura dos serviços em cada município afete residentes de toda essa rede de mobilidade em termos de potencial exposição a vírus respiratórios. Além disso, um ou mais municípios em situação crítica em termos de número de casos semanais acaba por afetar todos os municípios da mesma regional de saúde por conta da necessidade de leitos.

Afonte – Em função da heterogeneidade dos municípios e das regiões brasileiras, podemos falar em pico ou picos de Covid-19? Como saber (quais indicadores podemos utilizar, por exemplo) se chegamos ao ápice e a partir de quando haverá tendência de queda? Em que medida a falta de testes prejudica as projeções?

Marcelo Gomes – O mais adequado, no momento atual, é falar em picos de Covid-19, pois justamente cada território (sejam estados ou municípios) estão em momentos distintos da curva de incidência em função das características de mobilidade, medidas tomadas pelos órgãos públicos, e adesão da população às recomendações. Quanto ao ápice, apenas conseguiremos identificá-lo (ou identificá-los, se houver mais de um pico num mesmo local) quando estivermos já no período de queda. O tempo para isso é também da ordem de duas/três semanas para que possamos ter segurança de que a queda observada não é apenas “flutuação estocástica” (pequenas variações para cima ou para baixo que não são decorrência de alteração na tendência). A falta de testes afeta de maneira significativa a capacidade de desenvolver modelos matemáticos para fazer projeções, pois quanto menor for a qualidade do dado utilizado para “alimentar” os modelos, menor é a qualidade da projeção, principalmente para projeções de médio e longo prazo.

*Marcelo Gomes é pesquisador em saúde pública do Programa de Computação Científica da Fiocruz (PROCC/Fiocruz), coordenador do InfoGripe (parceira entre a Fiocruz e o Ministério da Saúde), e integrante do MAVE: Grupo de Métodos Analíticos em Vigilância Epidemiológica (PROCC/Fiocruz e EMAp/FGV). Possui doutorado em física pela UFRGS, tendo realizado estágio doutoral na Argentina (Instituto Balseiro, San Carlos de Bariloche), e estágio pós-doutoral nos EUA (Northeastern University, Boston), tendo dedicado sua pesquisa ao estudo de modelos de transmissão de doenças infecciosas e vigilância epidemiológica, e participado de pesquisas na área durante emergências sanitárias recentes como os surtos de Ebola (Oeste Africano, 2014) e Zika (Brasil, 2015).

Dados completos podem ser conferidos neste repositório.