2020: o ano da transparência?

Por Marília Gehrke*

O ano pandêmico demonstrou, de formas inimagináveis, o despreparo de órgãos públicos na condução de uma crise sanitária. Enquanto governos sérios apostaram na criação de comitês científicos e na tomada de decisões baseadas em estatísticas, o Brasil expôs suas fragilidades em um passo anterior e fundamental: a abertura de dados sobre a Covid-19. 

A postura omissa do governo federal não deu oportunidade de escolha à sociedade civil, que, de pronto, ainda em março, passou a monitorar os dados da pandemia de forma paralela. O Brasil.io, por exemplo, reuniu um time de 40 voluntários para coletar dados sobre mortes e contaminações pelo novo coronavírus a partir dos boletins estaduais. 

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Iniciativas como essa revelaram-se fundamentais em pelo menos dois momentos: em junho, quando o número de mortes disparava no Brasil, e em novembro, às vésperas das eleições municipais. Ciente de que não poderia esperar somente pelos dados em âmbito nacional, a imprensa brasileira fez um movimento semelhante, criando uma espécie de consórcio para o monitoramento. 

Enquanto estados e municípios apresentaram evolução na abertura e no detalhamento de dados, como demonstrou o Índice de Transparência Covid-19 da Open Knowledge Brasil, o Ministério da Saúde não só abriu mão de seu protagonismo em relação ao controle da pandemia como colecionou problemas que expuseram o despreparo da pasta. 

Observando de fora, fica difícil diferenciar a incompetência – como a adesão apenas à cobertura mínima no consórcio internacional de vacinação para um país com cerca de 210 milhões de habitantes e a politização da vacina – do projeto de caos capitaneado pelo governo, como a fixação do presidente Jair Bolsonaro por medicamentos ineficazes e a insistência nessas medidas, além da estranha exclusão de uma publicação que defendia medidas razoáveis de contenção da pandemia

Dados abertos 

De concreto, em relação aos dados, é possível lembrar que, desde o começo da pandemia, o governo federal ofereceu um painel limitado e que prioriza o número de curados em detrimento daqueles que perderam a vida para a Covid-19, e que hoje somam 191,5 mil (de um total de 7,5 milhões de casos, a despeito do discurso do presidente). 

O pouco ou quase nada que se sabe sobre as vidas perdidas para a pandemia de Covid-19 provém da granularidade de dados disponibilizados por estados e municípios e transformados em ferramentas e narrativas, como o projeto Inumeráveis. O Rio Grande do Sul, inclusive, é um dos estados que registrou avanços significativos na transparência. Da divulgação de arquivos não estruturados, em março, passou a disponibilizar um painel com a possibilidade de fazer o download de dados estruturados, cerca de três meses mais tarde. 

Lembrando que jornalistas, pesquisadores e profissionais que realizam análises independentes precisam de dados abertos para fazer o seu trabalho e conhecer, em detalhes, a realidade geográfica, de gênero e raça das pessoas mais atingidas pela pandemia. 

E por falar em jornalismo, seus profissionais cobrem – e cobram – o quanto é possível em meio a um cenário de violência direcionada à categoria. A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), por exemplo, tem liderado campanhas para estimular o acesso público à informação, a exemplo desta, que cobra transparência do ministro Eduardo Pazuello. Por falar nele, foi em seu governo que o Ministério da Saúde descontinuou o projeto Saúde Sem Fake News, fundamental para levar informação de qualidade à população. 

Falsa equivalência e desinformação

Enquanto isso, o jornalismo tenta sair fortalecido de um ano pouco transparente em termos de acesso aos dados. Mesmo que a cobertura sobre a pandemia ainda apresente problemas pontuais, como a falsa equivalência e o consequente espaço às declarações mentirosas do presidente, o saldo é, no geral, positivo, como avalia o professor Rogério Christofoletti, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). 

Reportagens que expuseram falhas em sistemas do Ministério da Saúde e que resultaram no vazamento de senhas e na exposição de dados pessoais reforçam a importância do jornalismo contextualizado e de qualidade, sobretudo em tempos pandêmicos. Revelam, ainda, outro tipo de transparência: a metodológica. Em 2020, o jornalismo precisou lidar com um cenário de incertezas estabelecido pela pandemia, e uma das saídas foi apresentar aos leitores, com clareza, os métodos utilizados e as limitações dos dados disponíveis.

Resta acompanhar os próximos desdobramentos da pandemia. Enquanto países desenvolvidos já deram início à vacinação, o Brasil anda para trás à medida que diminui a disposição da população em se vacinar, sentimento chancelado pelas bravatas do presidente. Nessas horas, fica evidente a falta de diálogo honesto entre as autoridades e a população, bem como a displicência na abertura de dados. 

*Doutoranda em Comunicação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e voluntária no Brasil.io durante seis meses para a coleta de dados do RS sobre a Covid-19.