Furar as bolhas da desinformação só será possível se políticos entrarem na conversa

Por Taís Seibt*

Publicado esta semana pelo Laboratório de Pesquisa em Mídia, Discurso e Análise de Redes Sociais – MIDIARS, o relatório “Desinformação, Mídia Social e Covid-19 no Brasil” deixa claro que não será possível furar as bolhas da desinformação sem a participação de agentes políticos. 

Conforme o estudo, uma autoridade política ou de saúde tem quase 1,5 vez mais chance de ser retuitada quando reproduz alguma desinformação sobre a vacina do que a mídia tradicional, educadores e até mesmo “veículos apócrifos hiperpartidários”, que também são considerados influentes no debate público, de acordo com a pesquisa.

Ações de letramento digital e fomento ao debate científico, claro, estão entre as sugestões dos pesquisadores para combater a desinformação nas redes. O problema é que essas iniciativas são lideradas, na maior parte do tempo, por jornalistas, pesquisadores e educadores, que são menos influentes no debate público, conforme o próprio estudo aponta. Como seremos capazes de desconstruir crenças e recompor fatos num cenário desses?

O estudo do MIDIARS também identificou que autoridades políticas e de saúde respondem por mais de 47% do total de conteúdo desinformativo que circulou no conjunto de dados analisados, sendo que 91% era de membros do governo federal e do legislativo. O engajamento gerado por atores políticos em discussões sobre a pandemia, sem contar a descredibilização da imprensa promovida por esses mesmos atores, aparece direta ou indiretamente em vários achados do grupo, que analisou durante quase um ano cerca de 30 milhões de tweets, mais de 100 mil postagens de grupos e páginas públicas do Facebook, mais de 5 mil posts do Instagram e cerca de mil postagens em grupos públicos do WhatsApp, todos em português. 

Autoridades políticas como influenciadoras

Fica claro no estudo do MIDIARS o enquadramento da pandemia como assunto político-partidário, seja pela conotação xenófoba do “vírus chinês” que seria uma “ameaça comunista” vinda da China, seja pela desconfiança nas vacinas – vacinar-se é entendido por alguns grupos como um “ato político-ideológico”, sendo a “vacina chinesa” tida como a “vacina do Doria”, governador de São Paulo pelo PSDB, que foi escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) como o principal adversário nos primeiros meses da pandemia de Covid-19.

A eficácia da vacina é enquadrada como derrota/vitória política de um e de outro na gestão da pandemia. Os pesquisadores temem, no entanto, que a descredibilização de vacinas patrocinada pela disputa político-ideológica em curso possa ter efeitos mais duradouros no pós-pandemia. Vale lembrar que o movimento antivacina é um problema de saúde pública que já vinha gerando preocupação da Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 2019 e os contornos político-ideológicos da discussão sobre vacinas no controle à Covid-19 não colabora.

Quando autoridades legitimam conteúdo desinformativo, exercem mais influência, de acordo com a pesquisa. Da mesma forma que as bolhas desinformativas demonstraram ter usuários mais engajados, que publicam mais e fortalecem ainda mais essas bolhas, onde o fact-checking e a mídia tradicional não penetram. Pior ainda, quando circulam nesses grupos, manchetes de veículos tradicionais com declarações de autoridades são usadas para legitimar a desinformação, não para desmenti-las. Para completar, links de “veículos apócrifos hiperpartidários” com versões alternativas dos fatos circulam muito mais.

“Em nosso trabalho com um dataset de links desinformativos sobre Covid-19 criados pela Poynter/International Fact-Checking Network, por exemplo, de um total de 4256 páginas e grupos que compartilharam desinformação no Facebook, apenas 10% dos grupos compartilharam a checagem. Além disso, nos grupos e páginas que compartilharam desinformação e checagem, pudemos observar que quase sempre a checagem é apresentada de modo a sustentar a desinformação e o viés ideológico do grupo.” (RECUERO et. al., 2021, p. 17)

Um fator que dificulta o alcance das checagens de fatos, sugerem os pesquisadores, são os planos de acesso patrocinado (zero-rating), que afastam parte da população de acessar informações publicadas fora de plataformas como Facebook e WhatsApp por não terem dados de navegação livre, apenas “redes sociais ilimitadas”. Dados do Cetic.br sobre o uso de internet durante a pandemia no Brasil indicam que 40% do acesso à internet se dá exclusivamente através de planos de celular. 

Responsabilidade editorial e politização dos políticos

Além de ações das plataformas, os pesquisadores convocam a responsabilidade dos veículos de mídia, para impedir manchetes de baixa qualidade, principalmente as que reproduzem declarações infundadas de políticos, pois elas ajudam a dar credibilidade para desinformação – algo de que já falamos por aqui

“Frequentemente, as manchetes são o único conteúdo da reportagem lido em mídias sociais (Ofcom, 2016; Newman et al., 2018), por isso reforçamos a necessidade de que sejam editorialmente elaboradas considerando essa realidade de uso, sendo claras e informativas. O fortalecimento do jornalismo é necessário frente a veículos apócrifos hiperpartidários, que tentam mimetizar um jornalismo, com o intuito de enganar o leitor, visto que utilizam de elementos jornalísticos (já consolidados na sociedade), com o intuito de desinformar (Hüttner, 2020). Além disso, devem evitar a reprodução de conteúdo que possa ser utilizado para reforçar narrativas desinformativas, como na reprodução de falas de políticos” (RECUERO et.al., 2021, p. 38).

Em um mercado de hiperconcorrência por atenção de usuários que dificilmente veem além da manchete, em um ecossistema de plataformas movido a cliques, a imprensa tradicional está em uma encruzilhada. Mas sem abrir mão de títulos “caça-cliques” e outras manchetes de baixa qualidade será difícil legitimar o trabalho jornalístico de verificação que corre em paralelo.

A responsabilização de agentes públicos que propagam “fake news” é outra sugestão do relatório do MIDIARS para conter a desinformação. Porém mais do que uma responsabilização com sanções previstas em lei, o que seria mesmo necessário é a responsabilização moral, ou seja, a conscientização dos atores políticos. É preciso que autoridades, seus assessores e conselheiros entendam os efeitos potencialmente nocivos da desinformação nos processos democráticos, dos quais, é bom lembrar, todos eles dependem para se manter em atividade, a menos que ocorra uma ruptura institucional. A crise da democracia representativa afeta diretamente esses atores.

É um pouco esse o sentido do debate que eu e meu colega Sérgio Trein, publicitário com pós-doutorado em comunicação pública e especialista em marketing político, estamos incentivando em nossas aulas no novo curso de Marketing Político nas Redes Sociais da Faculdade Cásper Líbero. A primeira turma está em andamento, repleta de assessores parlamentares e de governo, e a discussão está rendendo. Uma nova turma já está com inscrições abertas para julho. São espaços de diálogo que tentamos abrir e que são urgentes. 

Parceria entre o Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e o Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o MIDIARS atualmente conta com 25 pesquisadores, e é dirigido por Raquel Recuero, referência em estudos de redes sociais. Acesse aqui a íntegra da publicação.

*Taís Seibt é jornalista, professora da Unisinos e doutora em comunicação pela UFRGS. Sua tese de doutorado “Jornalismo de verificação como tipo ideal: a prática de fact-checking no Brasil” recebeu menção honrosa no Prêmio Capes de Tese 2020.

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