Em entrevista para Afonte, Álvaro Krüger Ramos, professor do Departamento de Matemática Pura e Aplicada da UFRGS explica projeções de contaminação por coronavírus na capital gaúcha e aponta falhas no monitoramento de dados sobre a doença no Brasil
Por Marília Gehrke
Se nenhuma ação tivesse sido tomada e o crescimento exponencial por Covid-19 tivesse se mantido em Porto Alegre, no dia 5 de abril a capital gaúcha poderia ter computado um total de 12 mil casos graves da doença – por volta de 3 mil exigindo atendimento em unidades de tratamento intensivo. O cálculo é do professor adjunto no Departamento de Matemática Pura e Aplicada da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Álvaro Krüger Ramos, quem mantém atualizado no YouTube um canal em que realiza análises sobre o Covid-19 com foco em Porto Alegre. Em cerca de uma semana, a primeira publicação do professor obteve 70 mil visualizações.
Com o objetivo de detalhar e aprimorar a compreensão dos dados locais sobre a pandemia do coronavírus, Afonte conversou com o professor da UFRGS. Nesta entrevista exclusiva, ele afirma que, com base nos números analisados, o isolamento social oferece boas chances de achatamento da curva de contágio. Até o último domingo, a Capital contabilizou 251 casos confirmados e quatro mortes, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde. O primeiro caso positivo na cidade remete ao dia 8 de março e, até o dia 17, havia um crescimento exponencial dos casos. Com as medidas para frear o espalhamento do vírus, o crescimento passou a ser linear por um período.
Atualmente, a quantidade de casos confirmados em Porto Alegre sugere um crescimento desordenado. No dia 30 de março, por exemplo, o número de novas ocorrências dobrou em relação ao que vinha sendo registrado diariamente. Embora ainda seja cedo para explicar esse fenômeno – se houve um afrouxamento das medidas de isolamento por parte da população ou se foi apenas um dia atípico – , a recomendação segue sendo ficar em casa. “Assim a cidade ganha tempo para se organizar, aumentando o número de leitos de UTI e preparando o sistema de saúde como um todo para os dias que ainda virão”, avalia Ramos.
Na avaliação do professor, a Prefeitura de Porto Alegre tem fornecido dados mais transparentes sobre Covid-19 em comparação ao Estado. A precisão e o detalhamento das informações são peças fundamentais para a elaboração de políticas públicas e para cálculos de propagação e projeção de espalhamento da doença. A subnotificação de mortes por Covid-19, por exemplo, poderia alterar – para menos – a taxa de letalidade.
Confira a entrevista completa:
O vídeo de estreia em seu canal no YouTube obteve cerca de 70 mil visualizações em uma semana. Como surgiu a ideia de criar este espaço e compartilhar análises? Você detectou alguma demanda específica sobre dados de Porto Alegre?
Eu tinha criado o meu canal no YouTube uns dias antes para postar aulas de cálculo via meio digital para os meus alunos do semestre corrente. Porém, não tinha elaborado nenhum material, principalmente pelas recomendações das comissões competentes no assunto dentro da universidade. No dia 27/03, fui checar os dados diários disponibilizados pela SMS [Secretaria Municipal de Saúde], como várias vezes já tinha feito. E, para matar a minha própria curiosidade, fiz um gráfico bem básico com estes dados. Observando este gráfico acabei me surpreendendo que o inicial crescimento exponencial do número de casos em Porto Alegre aparentemente tinha sido mitigado e que a cidade apresentava um crescimento praticamente linear desde o dia 18/03. Essa observação me pareceu fundamental e gravei o vídeo despretensiosamente, criando alguns gráficos a mais e falando sobre as observações que eu tinha em mente.
Foi uma grande surpresa que o vídeo atingiu um público tão amplo e teve uma recepção tão boa da sociedade. Foi essa recepção que me mostrou que de fato havia uma demanda por análises mais específicas, em vez das análises gerais que são apresentadas normalmente. Aproveitando o gancho, gostaria de observar que comparações como vemos várias vezes do tipo “Brasil x Itália, Brasil x China, Brasil x Alemanha”, entre outras, não são justas. Fundamentalmente, o Brasil possui cinco regiões e as cinco apresentam focos fortes de infecção por Covid-19 e, portanto, temos o potencial de cinco Itálias dentro do nosso território (também a China teve apenas um único foco mais forte da doença, na região de Wuhan). Por isso, as comparações mais corretas são as regionalizadas, que é o objetivo fundamental do que tento trazer para o canal.
Ao publicar vídeos didáticos e de linguagem acessível, você realiza um processo de divulgação científica. Como tem sido a experiência de sair da sala de aula e apresentar análises no ciberespaço, aproximando a universidade da sociedade? O que pode dizer quanto à recepção do público?
Quando preparo o material para os vídeos, tenho utilizado basicamente a mesma metodologia que trago para a sala de aula, de tentar ser o mais claro possível, sempre trazendo sinceridade e análises embasadas em dados. Inclusive, o meu “jeito de professor” me faz demorar um pouco mais nas explicações, e estou tentando fazer vídeos mais curtos com a mesma quantidade e qualidade de informação, que é o que a internet demanda. Mas acredito que a maior diferença entre o material digital e a aula ou palestra presencial seja a impossibilidade da reação do público alterar a continuação da explicação. Em matemática, às vezes a explicação que para uma pessoa é simples, outras acham mais complicada e falar a mesma coisa com outras palavras pode ajudar; no meio digital, não temos essa possibilidade. Mas, por enquanto, a recepção vem sendo ótima, o que me motiva para continuar produzindo material de qualidade, que tenta trazer dados e um ponto de vista mais lógico da situação.
Como você avalia a qualidade dos dados apresentados pela Prefeitura de Porto Alegre e pelo governo do Estado? O que precisa ser aprimorado? Levantamento realizado pela Open Knowledge Brasil mostra que a transparência das informações sobre Covid-19 é insuficiente em 90% dos estados brasileiros. O RS, por exemplo, está entre os opacos, apresentando baixo nível de transparência.
A questão primordial em nível nacional é que não parece haver um consenso sobre a melhor maneira de apresentar estes dados. Há estados que conseguem trazer mais informações, enquanto em outros casos a informação está incompleta, talvez pelo próprio desconhecimento por parte dos gestores de quais informações são relevantes para uma pesquisa séria (a resposta para isso provavelmente seja “toda e qualquer informação, exceto o nome, é relevante”). Este problema vem desde a unidade de atenção à saúde, que é quem registra o paciente no sistema e notifica os órgãos competentes; os funcionários muitas vezes estão sobrecarregados e simplesmente não têm tempo de fazer o registro com todo o cuidado necessário. Outras vezes, apenas falta um treinamento adequado.
Agora, particularizando à nossa região, primeiramente eu agradeço a Secretaria Municipal de Saúde por trazer diariamente o seu boletim. É um material bastante completo e bem organizado que traz, entre outras informações, a listagem de todos os casos confirmados com data de ingresso no sistema, idade e hospital que realizou a internação. O boletim também traz a informação primordial sobre a metodologia de escolha sobre quais pacientes são testados e quais não são testados, o que nos permite fazer hipóteses sobre o todo a partir da amostra de casos confirmados que temos. Claro que há espaço para melhoras, e gostaria de sugerir:
1) A divulgação dos casos que ainda estão em análise por data. O boletim traz, em seu balanço, o número de casos confirmados, em análise, negativos, óbitos, curados e inconclusivos. Como o número de casos em análise não é pequeno, para que uma análise mais séria possa ser feita seria fundamental saber de qual data é cada caso em análise. Talvez implementar isso retroativamente seja difícil, mas seria ótimo se todos os dias fosse divulgado algo do tipo “Casos novos confirmados (hoje): 10. Casos novos suspeitos (hoje): 16.” Assim, seria possível uma análise do pior/melhor cenário possível.
2) A divulgação de quantos casos (diários) foram confirmados em profissionais da saúde e quantos casos foram em pacientes que apresentaram sintomas graves. Como atualmente estamos testando apenas esses dois grupos [em Porto Alegre], é importante que tenhamos a noção do tamanho de cada grupo, principalmente para que se possa analisar a quantidade de casos graves por faixa etária. A identificação dos profissionais da saúde confirmados poderia ser apresentada no anexo do boletim, com um asterisco marcando esses profissionais, por exemplo.
3) A divulgação da quantidade de testes feita por dia e da capacidade de testagem que temos. Além disso, a divulgação do tempo médio e do tempo máximo entre a coleta de Swab e o resultado do teste (isso nos ajudaria a prever o número máximo de casos a cada dia, no sentido do item 1 acima).
4) Como Porto Alegre é uma cidade de grandes dimensões, poderia ser interessante saber o bairro ou região de residência do paciente, para se poder visualizar se há regiões necessitando de um programa mais forte de conscientização e campanhas de prevenção.
Agora, sobre os dados apresentados pela Secretaria da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul, os elogios que trago são menores que as sugestões. Ter a apresentação do número de casos confirmados organizado por data da coleta e um histograma da distribuição por faixas etárias, assim como a quantidade absoluta por cidade é bastante relevante, mas diversas outras informações são necessárias, entre elas:
1) A evolução diária organizada por cidade, ou pelo menos um boletim que registre os dados por cidade diariamente. Por exemplo, apenas observando os dados atuais de Bagé (em 05/04, a segunda cidade com mais casos no RS), não temos como saber se o surto por lá está controlado, se está em fase inicial ou se apresenta um crescimento grande nos últimos dias.
2) A data dos óbitos. Atualmente temos um número baixo de óbitos no Estado, porém todas as previsões e exemplos fora do Estado indicam que esse número pode aumentar rapidamente, portanto uma análise diária dos óbitos se faz absolutamente necessária.
3) Devido à grande complexidade dos dados do Estado, o conteúdo precisa urgentemente de uma interface que permita filtrar e organizar os dados. Novamente, saliento que embora por enquanto os casos confirmados sejam poucos, em breve esse número pode aumentar significativamente e será fundamental para uma análise correta da situação essa transparência no sistema.
4) É necessário que haja uma padronização nos testes realizados, ou que pelo menos saibamos as condições de cada paciente testado positivamente (se é assintomático ou se apresenta sintomas leves/médios, graves ou muito graves).
Um dos pontos mais criticados é a falta de transparência em relação ao número de testes para Covid-19. De que forma tornar esses dados públicos poderia auxiliar no conhecimento sobre a pandemia?
Muitas vezes se confunde falta de transparência de dados com divulgação de dados equivocados. Por isso, inicio aqui deixando claro que os números absolutos, até onde eu saiba, vêm sendo divulgados corretamente em todos os Estados e que não há uma divulgação a menor dos dados como às vezes se sugere em “teorias da conspiração” que circulam principalmente via aplicativos de comunicação.
Agora, em relação ao maior detalhamento dos dados divulgados, ele é crucial em dois aspectos. Primeiramente, para que se possa ter uma real noção de quais ações resultam em desaceleração da quantidade de casos novos e quais ações não surtem tanto efeito ou mesmo possuem efeito negativo e acabam por acelerar o contágio. Como exemplo principal, temos as decisões sobre medidas de isolamento, que são tomadas gradualmente e podem ser, ou não, flexibilizadas com o passar do tempo. É crucial termos uma análise séria e bem embasada sobre o impacto dessas ações sobre o surto em uma dada região.
Em segundo lugar, as grandes perguntas do surto dizem respeito ao futuro: Quando o surto vai acabar? O sistema de saúde vai aguentar? Quantos leitos precisamos criar para que não haja um colapso? Qual será a quantidade total de infectados? Qual será a mortalidade em cada faixa etária? Todas essas perguntas podem ser previstas (com um certo grau de confiabilidade) com o auxílio de modelos matemáticos. Porém, há uma dificuldade global na implementação desses modelos pois eles sempre dependem de diversos parâmetros, que inclusive variam no tempo, e que só podem ser estimados a partir dos dados já obtidos. Assim, quanto maior a precisão e confiabilidade desses dados, melhores serão os modelos matemáticos utilizados e o poder público estará mais bem embasado no seu processo de tomada de decisões.
O número de casos confirmados de Covid-19 em Porto Alegre sugere um crescimento desordenado, com momentos de aceleração e desaceleração. Houve uma pequena melhora (crescimento linear) logo após a implementação das primeiras medidas de isolamento social. Nos dias 15/03, 17/03 e 29/03, o número de novos casos variou de 11 a 16. No dia 30/03, no entanto, foram registrados 31 novos casos, conforme os números que você apresentou em vídeo recente, baseando-se nos dados divulgados pela Prefeitura. O que esses números nos mostram? Estamos regredindo?
Não necessariamente. Os números na nossa cidade ainda são pequenos, o que mostra que estamos em um estágio inicial do surto, e aspectos humanos, tais como procurar auxílio médico em um dado dia e não no outro, ainda têm um impacto significativo no registro dos casos. O dia 30/3 pode simplesmente ter sido um dia atípico, onde muitas pessoas decidiram simultaneamente buscar auxílio, gerando uma grande flutuação nos valores. Para podermos afirmar com segurança se estamos regredindo ou progredindo é necessária análise de todo um período. É importante, embora triste, mantermos em mente que o comportamento esperado na situação de pandemia é que a longo prazo haja um crescimento significativo – mais precisamente, exponencial – no número de casos. Em particular, eventualmente os casos novos por dia vão aumentar, e mesmo assim não vamos poder dizer com certeza que estamos regredindo no sentido de o nosso cuidado perante a doença esteja menor, apenas que a doença está se espalhando mais devido às suas características.
Uma das expressões mais ouvidas em tempos de pandemia é “achatar a curva”. O que isso significa e, de maneira geral, como Porto Alegre tem se saído em relação a esse objetivo?
Quando falamos “na curva”, estamos nos referindo ao gráfico que representa o número total de infectados em uma dada data, desconsiderando os pacientes que se infectaram previamente, mas já se curaram da doença. Esta curva possui o formato que lembra o perfil de um sino de igreja, mas pode ser um sino mais alto e com bocal pequeno, uma curva mais íngreme, ou um sino mais baixo e com o bocal grande, o que traz a impressão de uma curva mais “achatada”. Quando uma dada epidemia ocorre em uma região sem nenhuma medida de prevenção, essa curva vai naturalmente apresentar um aspecto mais íngreme, que significa rápido contágio e uma grande parcela da população contaminada simultaneamente. Quando falamos em achatar a curva, estamos fazendo menção ao efeito que medidas de prevenção trazem sobre esta curva, fazendo com que a doença se espalhe de maneira mais controlada e que haja menos casos simultâneos de pacientes contaminados, fazendo com que a curva fique comparativamente mais achatada.
Nesse sentido, ao observar os dados oficiais, o meu ponto de vista é que Porto Alegre vem fazendo um ótimo trabalho para achatar a curva. Até o dia 17/03, vínhamos com um crescimento exponencial (gráfico abaixo) duplicando a quantidade de casos a cada 2 ou 3 dias.
Após essa data (17/03), Porto Alegre vem apresentando um tempo médio para duplicar o número de casos entre 6 e 8 dias, o que me traz o sentimento de que estamos fazendo algo certo. Se nenhuma ação tivesse sido tomada e o crescimento exponencial inicial tivesse se mantido, hoje (dia 05/04), poderíamos estar enfrentando um total de 12.000 casos graves confirmados de Covid-19, dentre estes por volta de 3.000 exigindo atendimento em unidades de tratamento intensivo. Em comparação, segundo o último boletim da SMS, temos 240 casos graves, e por volta de 60 exigindo atendimento em UTIs.
Fala-se em subnotificação de casos em todo o País. Em março, por exemplo, o Brasil registrou recorde de pessoas internadas por crises respiratórias graves – 18,6 mil no total, 15,7 mil acima do esperado para este período do ano, segundo dados do Ministério da Saúde apresentados em reportagem da Revista Piauí. Seguindo esses cálculos, o Brasil teria cerca de 80 mil pessoas infectadas pelo vírus, e não 10,2 mil (dados de 04/04). Diante disso, três perguntas:
a) Como você avalia o impacto da possível subnotificação de casos para Porto Alegre e para o Estado? A construção de políticas públicas, que se baseia em cálculos, deveria ser revisada?
A revisão de políticas públicas é papel fundamental do gestor público e do meu ponto de vista deve ser sempre feita, independentemente de subnotificação ou de notificação errada no número de casos. Agora, sendo mais específico, o impacto que a subnotificação traz para estudos com base na cidade de Porto Alegre me parece ser baixo, pois os critérios de testagem estão bem estabelecidos. Em relação ao Estado, este deveria também padronizar e explicitar quais casos estão sendo testados, ou ao menos divulgar os casos positivos de acordo com a sua gravidade. No momento atual, me parece impraticável que se faça em nível nacional ou mesmo regional a testagem em massa. Porém, é de grande interesse estratégico que se faça o possível para chegarmos cada vez mais próximo desse estágio, pois a qualidade dos dados influenciam significativamente na qualidade dos estudos e previsões.
b) Como é feito o cálculo da taxa de letalidade por Covid-19? A subnotificação poderia atrapalhar essa conta?
A taxa de letalidade de qualquer doença é medida através da divisão do número de óbitos causados pela doença pelo número total de indivíduos contaminados. Portanto, há duas observações a se fazer. Primeiro, uma subnotificação no número total de casos resulta em uma maior taxa de letalidade, pois estamos dividindo o número de óbitos por um valor menor do que deveríamos. Por outro lado, caso haja uma subnotificação no número de óbitos, a taxa de letalidade estaria sendo calculada para menos. O ideal a se fazer é ter o controle total ao menos dos casos graves e de todos os óbitos, assim a taxa de letalidade “real” pode ser estimada com a precisão correta.
c) O Rio Grande do Sul apresenta 11,3 milhões de habitantes e cerca de 20% dessa população é idosa. Sabe-se que os idosos estão entre os mais suscetíveis à contaminação e morte por Covid-19. Este cenário vem sendo ou deve ser levado em conta nos cálculos da taxa de letalidade pelo vírus?
Para o cálculo puro e simples da taxa de letalidade, as diferentes faixas etárias não entram em consideração. Porém, pode-se analisar a taxa de letalidade dentro de um dado grupo. No caso em questão, dividiríamos o total de óbitos entre os idosos pelo total de idosos que se contaminaram. Por outro lado, qualquer estudo que tenha como objetivo gerar projeções futuras sobre o número de contaminados e o número total de óbitos para o Estado deve, sim, levar em conta as diferentes taxas de mortalidade para as diferentes faixas etárias, dado que pode ser obtido com base no cálculo efetuado em países com testagem em massa (China, Coréia do Sul, Alemanha).
O boletim epidemiológico apresentado pela Prefeitura no dia 04/04 mostra, na página 7, o total de pacientes positivos para Covid-19 internados em UTIs. O número total chega a 32, o que ultrapassaria os 5% de casos graves (em relação ao total de casos) tanto para Porto Alegre (241 confirmados/12 seriam graves) quanto para o RS (418 confirmados/21 seriam graves). Em geral, adota-se 5% como parâmetro para casos graves em relação ao total de casos apresentados, correto? Esse percentual estaria subestimado? Qual o impacto sobre as políticas públicas, neste caso?
Primeiramente, vamos entender de onde vem esse número 5%. Em estudo científico tomando como base os pacientes na China, onde houve testagem em massa mesmo em pacientes assintomáticos, observou-se que 80,9% das infecções foram “brandas” no sentido que apresentaram sintomas leves ou mesmo nenhum sintoma. 13,8% dos infectados apresentaram sintomas “graves”, ou seja, dificuldades respiratórias com a necessidade de tratamento com oxigênio. Finalmente, 4,7% dos casos confirmados necessitavam internação em unidade de tratamento intensivo com ventilação assistida. Um arredondamento nos levou às proporções 80-15-5 para os respectivos casos leves, graves e muito graves.
Em Porto Alegre, são testados apenas pacientes que apresentem sintomas graves e muito graves e os profissionais da área da saúde que apresentam qualquer sintoma. Assim, o total de casos confirmados em Porto Alegre deve ser dividido em três grupos: A. Casos muito graves; B. Casos graves; C. Profissionais da saúde sem sintomas graves ou muito graves. De acordo com o boletim citado, não temos conhecimento específico do número de pacientes em nenhum desses grupos. Em relação ao grupo A, apenas sabemos que hoje (05/04), 32 pacientes estão internados em UTIs, mas não sabemos quantos outros já foram internados em UTIs devido a Covid-19 e já receberam alta. Além disso, não há a distinção dos pacientes dos grupos B e C.
Esses fatos impossibilitam qualquer análise sobre o percentual de casos graves para o número total de infecções. Porém, para fins puramente didáticos, vou fazer duas análises abaixo, com diferentes hipóteses sobre os dados faltando.
Análise 1: Suponha que número de pacientes no grupo A seja exatamente 32 (em outras palavras, nenhum paciente com sintomas muito graves recebeu alta). Como esse grupo representa por volta de 5% do número total de casos, observamos que o total de pessoas infectadas em Porto Alegre deve ser 620. Como 15% de 620 são 93 casos, essa deve ser a quantidade de pessoas no grupo B, de onde obtemos que 116 pessoas estão no grupo C (pois a soma dos grupos A, B e C deve ser 241). Esse cenário (total de infectados 620, sendo 32 muito graves, 93 graves e 495 leves, dentro destes 495 temos 116 profissionais de saúde) se enquadra na hipótese 80-15-5.
Análise 2: Suponha que o número de pacientes do grupo C seja zero. Assim, os 241 casos de Porto Alegre se dividem apenas entre os grupos A e B, que totalizam 20% de todos os pacientes infectados. Portanto, o número total de pessoas infectadas na cidade deve ser por volta de 1205, com 5% sendo infectados de maneira muito grave (61 pessoas) e 15% de maneira grave (180 pessoas). Isso nos mostra que, embora atualmente apenas 32 pessoas estejam em terapia intensiva, ao todo 61 pessoas já passaram por uma dessas unidades. Esse cenário (total de infectados 1205, sendo 61 muito graves, 180 graves e 964 leves) também se enquadra na hipótese 80-15-5.
As duas análises acima trazem as situações extremas, e a realidade provavelmente é um caso intermediário entre elas. Para que seja possível fazer um levantamento correto da proporção de casos graves/muito graves, fica claro que um detalhamento maior do boletim torna-se necessário.
Qual é a importância do isolamento social em Porto Alegre? Pensando no futuro, o que se pode esperar de um cenário com: a) crescimento linear e b) crescimento exponencial?
O isolamento social em Porto Alegre é fundamental para que vidas sejam salvas. Com o isolamento social, temos um grande achatamento da curva de contágio. A cidade ganha tempo para se organizar, aumentando o número de leitos de UTI e preparando o sistema de saúde como um todo para os dias que ainda virão. Além disso, quando a curva se achata, o número de infecções se distribui mais no tempo, e mesmo no ápice da doença existe uma quantidade menor de pacientes que necessitam simultaneamente de atendimento de urgência. Falando em termos práticos, os dados da SMS apresentam um total de 515 leitos de UTI na cidade, dos quais há uma ocupação média de 70%. Em outras palavras, em um dia típico existem em torno de 150 leitos de UTI disponíveis em Porto Alegre. Se em um dado dia o número de pacientes com suspeita de Covid-19 apresentando sintomas muito graves em Porto Alegre chegar a 200 (para comparação, dia 04/04 tínhamos 34 suspeitos e 28 confirmados, totalizando 62 pacientes em UTIs devido ao Covid-19), 50 desses pacientes ficarão sem atendimento, diminuindo drasticamente suas chances de recuperação.
No período de 17/03 a 29/03, Porto Alegre apresentou um crescimento no número de casos muito semelhante ao linear (gráfico acima). Porém, pensando no futuro, não é de se esperar que o comportamento de crescimento basicamente linear se mantenha a longo prazo, mas quanto mais tempo se mantiver sob controle, melhor. Durante um crescimento exponencial, o que se observa é que existe um período determinado onde o número de casos confirmados da doença se duplica a cada período. Um exemplo é a Cidade de Nova York. No período de 8 a 15 de março, a quantidade de casos praticamente duplicava todos os dias. Entre dia 15 e dia 20, se duplicava a cada 3 dias. Atualmente, o crescimento está um pouco mais controlado, duplicando por volta de a cada 8 dias.