Por Taís Seibt*
Poucas vezes não só dados, mas termos estatísticos pautaram tanto as conversas públicas como agora. Há pelo menos três meses, só se ouve falar de pico, curva, achatamento e outras proporções que nem sempre fazem sentido. Questiona-se tanto a subnotificação quanto a inflação de casos de Covid-19. E assim vão se modificando os painéis de monitoramento nos estados, municípios e no governo federal, surgem novas bases de dados e levantamentos paralelos, que, por mais bem-intencionados que sejam, podem acabar sendo usados de forma inadequada, contribuindo para o que a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem chamado de infodemia.
Na definição da OMS, a palavra infodemia se refere a um grande aumento no volume de informações associadas a um assunto específico, que podem se multiplicar exponencialmente em pouco tempo devido a um evento específico, como a pandemia atual: “Nessa situação, surgem rumores e desinformação, além da manipulação de informações com intenção duvidosa. Na era da informação, esse fenômeno é amplificado pelas redes sociais e se alastra mais rapidamente, como um vírus”.
Em resumo, há um excesso de informações, algumas precisas e outras não, que tornam difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis. Mas o que tem mesmo colocado abaixo procedimentos clássicos de apuração e verificação de fatos, práticas jornalísticas muito anteriores ao fact-checking como conhecemos hoje, é a instabilidade dos dados oficiais sobre Covid-19 e a forma como os gestores públicos têm usado levianamente certas informações sob o argumento de não alarmar a população.
Inconsistência
O capítulo mais recente foi protagonizado esta semana pela Secretaria de Saúde de Porto Alegre. A jornalista e pesquisadora Marília Gehrke escreveu, na semana passada, sobre o desencontro de dados da Capital e do Estado. Na última terça-feira, uma análise publicada pela Folha de S. Paulo resolveu espiar por debaixo do tapete: capitais que “vencem” a Covid-19 “perdem” para a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), que tem sintomas semelhantes e cujo disparo de registros vem sendo observado pela Fiocruz.
Porto Alegre, no final de maio, contava com “raros 38 mortos pela Covid-19. O que não entrou no cálculo gaúcho foram as 151 vítimas de síndrome respiratória”, diz a reportagem, produzida por Marcelo Soares, do Lagom Data, que acompanha a evolução da Covid-19 pelo país desde o início da pandemia.
A prefeitura não gostou. Em uma sequência de tuítes publicada ontem, um dia após a matéria da Folha, lamentou “a forma leviana do uso de dados” na matéria, e usou dados do Portal da Transparência do Registro Civil para contrapor a análise. Um mês atrás, a Agência Lupa explicou por que é preciso ter cautela no uso desses dados devido às inconsistências de sua atualização. Uma série de conteúdos que usaram esses dados para negar a pandemia viralizaram nas redes, incluindo as do presidente Jair Bolsonaro, que teve o post marcado como falso pelo Instagram.
O problema é que o sistema demora a ser abastecido pelos cartórios e é alimentado em ritmos diferentes em cada lugar, por isso, há defasagem de informação e não se pode tomar o recorte do dia como um retrato do momento. O resultado é que se passa mais tempo explicando por que uma base de dados tem problemas – e o mais preocupante, por que os dados oficiais têm problemas – do que discutindo a solução para o real problema a ser enfrentado. Soma-se a isso um conhecimento limitado sobre os conceitos estatísticos básicos necessários à compreensão desse debate. Um prato cheio para o que se tem chamado de “disputa de narrativas”.
Não era para haver narrativas em disputa quando há evidências científicas para pautar as conversas públicas e, principalmente, as decisões governamentais. A oferta de informação e de dados aumenta de forma inversamente proporcional à capacidade de compreensão sobre os métodos de sua produção e análise. Sem condições de questionar tecnicamente, é mais fácil aceitar a versão que soa mais conveniente ao que se deseja. A desinformação se alimenta disso.
O Aos Fatos chegou a publicar um guia de como ler um artigo científico, em mais um exemplo de conteúdo jornalístico que não apenas transmite, mas também explica a informação. É o que os governos também deveriam fazer, honrando seu compromisso de transparência pública. O alarmismo midiático pode ser criticado e deve ser tensionado, mas não rebatido com negacionismo pelos gestores públicos.
*Taís Seibt é jornalista, professora da Unisinos e doutora em Comunicação pela UFRGS