Pesquisa recém publicada pela Folha sugere que quem consome “jornalismo profissional” tem menos chance de acreditar em desinformação, mas há um conceito anterior a ser discutido para que tal conclusão faça sentido
Por Taís Seibt*
Uma pesquisa publicada pela Folha de S. Paulo esta semana mostrou que consumidores de “jornalismo profissional” têm menos chance de acreditar em desinformação. Embora seja evidente que não há melhor antídoto contra desinformação do que informação verificada e contextualizada, junto com alfabetização midiática e medidas de plataformas, a ideia de “jornalismo profissional” contida no estudo precisa ser problematizada.
Conforme a divulgação da Folha, o experimento conduzido cientistas políticos das universidades da Carolina do Norte – Charlotte (EUA), federal de Minas Gerais (UFMG) e federal de Pernambuco (UFPE), em parceria com a Folha e a consultoria Quaest, trabalhou com um grupo “controle” e outro que recebeu informações sobre checagem de fatos, além de acesso gratuito ao conteúdo da Folha. Ao expor os dois grupos a peças de desinformação marcadas como falsas por fact-checkers (sem divulgar a marcação aos participantes), 65% dos membros do grupo de controle acreditaram em pelo menos um conteúdo, enquanto no grupo de tratamento foram 46% os que acreditaram. Um paper com mais detalhes deve ser publicado pelos pesquisadores, segundo a reportagem.
Pelo divulgado até aqui, restam algumas interrogações sobre a metodologia do estudo, que considera, por exemplo, sites como Terça Livre e Brasil Paralelo como veículos de informação. Ainda que o enquadramento seja pela perspectiva dos usuários, é preciso problematizar a noção de imprensa, mídia ou meio de informação, tanto quanto o de “jornalismo profissional”.
Mudanças no jornalismo
Meu principal interesse de pesquisa no doutorado não era propriamente o fact-checking (checagem de fatos), e sim as mudanças do jornalismo. Entendo que o jornalismo contemporâneo passa por mudanças estruturais, que são mais profundas do que inovações pontuais ou aprimoramentos em processos e práticas. Essas mudanças reestruturam processos e práticas, como o conceito sugere. Não acho que essas mudanças estruturais estejam totalmente consolidadas no contexto contemporâneo, mas entendo ser possível considerar um período “pré-paradigmático”, em que novas estruturas começam a se impor ao mesmo tempo em que o paradigma vigente se desestrutura e tenta se adaptar ao cenário. O resultado desse processo pode ser o surgimento de um novo paradigma ou a reafirmação do atual se ele for capaz de acomodar a estrutura novamente.
A prática de fact-checking no Brasil foi o objeto empírico que me permitiu observar essa tensão estrutural mais de perto. Em 2016, quando comecei a observar essa prática, a checagem de fatos estava restrita a iniciativas independentes, nativas digitais, que buscavam novas formas e novos espaços para fazer (bom) jornalismo fora das estruturas tradicionais, cada vez mais esvaziadas por sucessivos “passaralhos”, perda de receita publicitária para o mercado das plataformas e ainda constantes questionamentos à credibilidade e isenção de sua cobertura.
Enquanto essas jovens iniciativas ainda se esforçavam para impor seus métodos de verificação, com princípios compartilhados com similares de várias partes do mundo a partir da International Fact-checking Network (IFCN), crescia a pressão sobre as plataformas – e as democracias – ao redor do mundo, devido à escalada de desinformação nesses ambientes. Verificar conteúdos e mostrar evidências de falsidade tornou-se uma necessidade urgente nesse cenário. O problema é que a verificação se converteu também em um ativo para que empresas jornalísticas – as mesmas que vinham sendo questionadas nesse ambiente controverso – buscassem na prática emergente uma nova forma de autoafirmação de sua credibilidade e relevância no ecossistema de comunicação.
Legitimidade para verificar
Em duas ocasiões recentes, em uma aula de pós-graduação na Fiocruz e depois em um debate virtual organizado pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), fui questionada por públicos altamente qualificados sobre a legitimidade dessas instituições – a “grande mídia” – para “dizer o que é verdade”. É um questionamento difícil de responder.
Tenho convicção de que o jornalista é o profissional mais indicado para verificar informações. É um compromisso ético do jornalista buscar a comprovação dos fatos que noticia. Pela deontologia de sua profissão, ou seja, o “dever ser” do repórter, esse profissional deve se pautar pela busca de evidências. O fact-checking resgata exatamente isso, enfatiza a verificação como elemento diferencial do jornalismo – e não a objetividade. Quando direcionamos a especificidade – e a especialidade – do jornalismo para a verificação, ao invés da objetividade, temos dois pontos importantes de corte: método e transparência.
O cientista, tal qual o jornalista, não deixa de lado sua subjetividade quando conduz um ensaio clínico, isso é impossível. O que garante objetividade ao cientista é o método. E esse método precisa ser transparente para ser validado. Na ciência, isso implica explicitar os procedimentos adotados, as tomadas de decisão, as quantidades de cada substância, e assim por diante, para que outros cientistas possam avaliar o rigor da descoberta. A prática de fact-checking trouxe ao jornalismo o que lhe faltava na maior parte do tempo: a transparência do método como obrigação. Mostrar as fontes e os caminhos da verificação para que ela possa ser validada por terceiros.
A credibilidade está no método
Por esse critério, a credibilidade de um conteúdo verificado não se dá porque foi o veículo A ou B que verificou, e sim pelas evidências que ele apresenta. Será mesmo que o conteúdo jornalístico dos veículos tradicionais por regra apresenta as evidências necessárias para comprovar o que reporta? Ou apenas espera que o leitor confie na sua reputação para ter certeza? Se o critério é o da reputação, veículos de mídia que se pautam por vieses de confirmação – não raro negacionistas e enganosos – caso de alguns citados no estudo da Folha, provavelmente levarão vantagem. Como se pode ver em qualquer timeline ou grupo de mensagens, o que confirma minhas crenças é o que vale, o resto é “fake news”.
Nesse ponto, podemos retornar ao questionamento inicial. Pelo critério da pesquisa da Folha, será “jornalismo profissional” o praticado por veículos jornalísticos tradicionais? De fato, nesses espaços, ao longo do século XX, é que se formou a identidade e a deontologia profissional do jornalismo. Mas como posicionar nesse conjunto da mídia profissional iniciativas nativas digitais inovadoras, como as pioneiras de fact-checking, e dissociá-las da desconfiança de que padece a mídia tradicional? Como separar essas e outras tantas iniciativas de jornalismo fora da “grande mídia”, que fazem jornalismo contextualizado, verificado e transparente, de outros tipos de nativos digitais que propagam desinformação e ainda disputam espaço – e reputação – como veículos de informação na sociedade?
Fecho com o que disse o professor Marco Antonio da Costa Sabino, coordenador do Centro de Pesquisas de Mídia e Internet do Ibmec-SP à própria Folha, na matéria que divulga o estudo: “O que é imprescindível é ser sempre crítico em relação ao que se está lendo, independentemente de origem, viés ou ideologia. Tem que duvidar de tudo. Não pode existir argumento de autoridade.”
Se não pode existir argumento de autoridade, não pode haver conceito de “jornalismo profissional” associado a uma marca ou espaço de produção. É preciso que o jornalismo seja transparente, não só nos conteúdos declaradamente de fact-checking. Não há dúvida de que educar para a mídia é uma urgência. Assim, mostrar seus métodos de apuração, indicar as evidências do que noticia é uma forma de o jornalismo verdadeiramente profissional participar desse processo.
*Taís Seibt é jornalista, professora da Unisinos e doutora em comunicação pela UFRGS. Sua tese de doutorado “Jornalismo de verificação como tipo ideal: a prática de fact-checking no Brasil” recebeu menção honrosa no Prêmio Capes de Tese 2020.