(Re)invenção da checagem dos fatos: o fact-checking como estratégia de mercado para empresas jornalísticas

*Por Marta Alencar

Minha dissertação de Mestrado, com o título “(Re)invenção da checagem dos fatos: estudo comparativo das estratégias mercadológicas das empresas Folha e Estadão”, partiu da minha curiosidade de compreender a adoção do fact-checking nos conglomerados de mídia tradicional, que atuam com a verificação em suas redações. 

No dicionário, a palavra (re)inventar faz menção ao conceito e significado de (re)criar uma solução para um problema antigo, mas que exige uma nova abordagem. Assim como o próprio fact-checking, a palavra é citada como uma estratégia de mercado que renova as práticas de verificação diante do poderio da indústria da desinformação. Assim, a pesquisa aborda como as empresas de mídia vêm transformando processos de produção de notícias e suas fontes de financiamento, investindo em várias atividades econômicas rentáveis, dentre elas, o fact-checking .

A pesquisa analisa comparativamente as Unidades Estratégicas de Negócios das seções de fact-checking do Estadão e da Folha. Além disso, utiliza-se do conceito de “mercantilização” dentre os estudos da Economia Política da Comunicação (EPC) e da Economia Política do Jornalismo (EPJ).

Desinformação lucrativa

A rápida mudança para um ambiente mais digital e móvel provocou alterações drásticas no contexto econômico das notícias. As organizações estão em um momento crítico de sua história como uma força independente diante do poder das plataformas dominando esse mercado de divulgação de conteúdo. No entanto, a essência do jornalismo não mudou, mesmo com esses novos players e ainda que a informação (mercadoria) seja integrada a um sistema desenvolvido para distribuir em menor tempo e com maior velocidade. 

Seibt (2019) reconhece que o modelo de negócio das plataformas tem contribuído para alavancar um mercado de desinformação, que submete sites especializados em boataria ou conteúdos tendenciosos às mesmas regras de distribuição e remuneração de sites jornalísticos. Para Bucci (2020) esse fenômeno é denominado de indústria de desinformação, pois é bem arquitetada e mantém uma linha produtiva dedicada a produzir conteúdos em massa que corroem a honra da mídia e de jornalistas respeitados.

O escândalo de compartilhamento de dados de 87 milhões de contas de usuários no Facebook pela empresa britânica Cambridge Analytica nas eleições dos Estados Unidos em 2016 revelou que a campanha de Donald Trump utilizou indevidamente informações de usuários para manipular a opinião de eleitores e promover desinformações contra sua adversária, Hillary Clinton. A empresa também foi responsável por articular um movimento em prol do referendo Brexit, que culminou na saída do Reino Unido da União Europeia em janeiro de 2020, após 47 anos.

Diante da repercussão negativa da vitória de Donald Trump nas eleições dos Estados Unidos, a atenção se voltou ao poderio das plataformas no mercado de notícias. Na época, o presidente executivo do Facebook, Mark Zuckerberg, reconheceu que sua criação não era “apenas uma empresa de tecnologia”, mas sim um “novo tipo de plataforma”. Na época, Zuckerberg escreveu uma publicação em seu perfil pessoal, onde declarou que mais de 99% dos conteúdos do Facebook eram autênticos.

Apesar de criar várias medidas para amenizar os efeitos desastrosos das eleições de 2016, o Facebook cometeu outro equívoco, em 2018, ao reduzir a porcentagem dos conteúdos do feed de notícias de 5% para 4%. A justificativa seria que os usuários interagiriam e visualizariam mais conteúdos de seus amigos e menos de páginas públicas. Isso corroborou para uma queda drástica da visualização de páginas de notícias, gerando mais bolhas dentro da própria plataforma.

Diante disso, a Folha decidiu não atualizar mais sua conta no Facebook, após notar que a rede social limitou a visibilidade das páginas jornalísticas com base em interações dos usuários. Mesmo com essa decisão, a Folha manteve sua página na rede social. Apesar da Folha ter feito essa declaração com postura crítica sobre a atuação da plataforma, a pesquisa destaca que houve interesses mercantis que contribuíram para essa decisão, principalmente pelo Facebook não fornecer retorno financeiro aos veículos. A Folha, por exemplo, publicava conteúdos gratuitamente na rede social e não conseguia aumentar consideravelmente os acessos e até mesmo os lucros.

Mas essa medida do conglomerado de mídia reforça também que um dos maiores problemas dessas plataformas é que elas intensificam interesses e opiniões dos usuários. Apesar do discurso da liberdade de acesso, os usuários são frequentemente bombardeados e direcionados a consumirem com base na leitura e no uso dos seus dados pessoais concomitantemente que visualizam conteúdos controlados pelos algoritmos dessas plataformas.

Durante a pandemia, em 2020, o Facebook, por exemplo, apresentou resultados financeiros positivos, com alta de 22% na receita, chegando à marca de 85,9 bilhões de dólares. A empresa se beneficiou da alta de 21% na receita com anúncios publicitários. O lucro da companhia no ano passado foi de 29,1 bilhões de dólares, alta de 58%. A receita cresceu 33% em relação ao mesmo período do ano passado, chegando a 28,07 bilhões de dólares. O lucro no período cresceu 53%, chegando a 11,2 bilhões de dólares.

Fact-checking como estratégia mercadológica

A mercantilização do jornalismo é citada e abordada com parâmetro na Economia Política da Comunicação, colaborando para apresentar um quadro de tendências e novas estratégias de mercado adotadas pelas organizações jornalísticas para captarem novos financiamentos e rendimentos.

O estudo faz uma análise comparativa e crítica sobre os observáveis e verifica a consolidação do blog do Estadão Verifica como uma Unidade Estratégica de Negócio do Grupo O Estado, porque conta com um planejamento organizacional e uma equipe especializada em fact-checking, que se baseia no modelo adotado pelas agências de checagem, todavia não abrindo mão de sua verificação tradicional em reportagens e colunas.

Enquanto isso, a Folha Informações no Grupo Folha é considerada apenas uma atividade rentável sem um planejamento claro e uma equipe específica de atuação conforme as distintas unidades de negócios que possui. A pesquisa destaca que o blog de fact-checking do Estadão é o único no Brasil, entre os grandes jornais, que é signatário do código de princípios estabelecidos pela International Fact-Checking Network (IFCN). A agência Lupa e o site Aos Fatos, que não são ligados a grandes grupos de mídia, também são signatários da IFCN.

A pesquisa apresenta os modelos de negócios das empresas jornalísticas, embora tenha focado no desenvolvimento de atividades estratégicas no combate à desinformação. O desenvolvimento dessas estratégias é recente e vem sendo abordado por organizações de mídia seguindo modelos de conteúdos e parcerias de negócios bastante semelhantes ao das agências de fact-checking

“Capitalismo de plataforma”

No dossiê Jornalismo Pós-Industrial – Adaptação aos novos tempos produzido pelo Tow Center for Digital Journalism da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia, coordenado pelos C.W. Anderson, Emily Bell e Clay Shirky e que teve uma edição especial na Revista Unisinos, intitulado Jornalismo Pós-industrial: Caminhos para um pós-jornalismo, Salaverría (2014) revela que o grande desafio para os meios tradicionais é manterem a legitimidade da atuação no mercado, ao mesmo tempo que se adaptam a modelos muito mais apropriados de consumo e distribuição de conteúdos na internet. 

A transformação digital da sociabilidade produziu uma indústria que transforma dados em recursos valiosos. Esse processo é intitulado de datificação, que consiste na coleta e uso de dados dos usuários, que posteriormente são comercializados para garantir lucros a empresas. Martins (2020) observa que esses dados têm sido chamados de “o novo petróleo” da economia. Mas a autora menciona que há também o uso da expressão de “capitalismo de plataforma” para empresas que detêm de um conjunto cada vez mais amplo de bens e serviços nesse segmento.

Hoje, a predominância de lucrativos modelos de negócio baseados em filtragem algorítmica que direcionam produtos e serviços para os usuários e utilizam em grande medida dados dos mesmos por meio do big data têm se expandido de tal forma que acentuam no mesmo ritmo da desordem informacional. É nesse embate entre o capitalismo de plataforma e mercantilização do jornalismo que o fact-checking se apresenta tanto como estratégia mercadológica quanto como medida necessária ao combate à desinformação, o que não ocorre sem conflitos, desafiando profissionais e pesquisadores.

*Marta Alencar é jornalista, especialista em Marketing Digital e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI)